
Na 2ª Guerra Mundial, no auge do domínio germânico,
Casablanca, em Marrocos, é um ponto de passagem obrigatória para os refugiados
que pretendem alcançar as margens americanas através das ligações com Lisboa.
Ali, Rick Blaine (Humphrey Bogart), um americano, possui um estabelecimento por
onde todos passam. Um dia, Victor Laszlo (Paul Henreid), um revolucionário
checo que se opõe ao regime nazi, chega a Casablanca com a sua mulher Ilsa Lund
(Ingrid Bergman) à procura da rota para a América. Desconhecido de Laszlo, Ilsa
e Rick partilham uma história passada que pode afectar as suas pretensões.
Provavelmente
não existe nenhuma fórmula balanceada no cinema; não existe nenhuma
concentração ideal de romance, drama e humor. Mas, a existir, Casablanca é a grande e mais perfeita
expressão desta soberba e sublime combinação. Casablanca faz apaixonar, faz sentir e faz sorrir; um verdadeiro
triunfo e um maravilhoso subterfúgio consumado numa época cinzenta e funesta. Casablanca, que parece tematicamente
imparcial à superfície, é uma obra intrinsecamente patriótica, patriótica pelo
mundo, pelos valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade.
Adequadamente, Rick, o protagonista desta intemporal narrativa, interpretado
com classe por Humphrey Bogart, é alguém aparentemente neutro, desinteressado e
emocionalmente vazio; todavia, alguém que, debaixo desta máscara de salvadoras
falsidades, resguarda uma moral imensa e comprometida na integridade. Rick é o
verdadeiro benfeitor resignado, alguém que julga agir pela circunstância,
negando e jamais atribuindo mérito ao seu natural decoro. Humphrey Bogart dá
uma lição de representação e cria um Rick para todos os tempos.
O primeiro
acto de bondade de Rick acontece quando Casablanca
nos introduz o Rick's Café Américain,
um estabelecimento de folia e de jogos de sorte e azar que sobrevive graças à
capacidade de Rick para subverter a autoridade local e manter a neutralidade.
No clima de incerteza, o Rick’s é um
refúgio cultural e social para acomodados e refugiados, uma porta de acesso à
época pré-guerra. Quando Laszlo e Isla entram pelo Rick’s adentro, a sensação de imersão temporal atinge o seu auge.
Isla sente-se inundada por uma tranquilidade inesperada, por um estado de
espírito que não sentia desde que a guerra a tinha alcançado. O realizador Michael
Curtiz captura este momento com admiração, focando a sua câmara no olhar
surpreendido da bela Isla, cuja, sem imediatamente se aperceber, reconhece logo
a distintiva de Rick, a sua paixão dos tempos de Paris. Ingrid Bergman é aqui,
e por aqui adiante, deslumbrante e vibrante.
O primeiro
contacto de Rick com Isla, ao som de As
Time Goes By, deixa uma primeira explicação para o rancor e para a
indisposição que Rick ostenta desde que nos é apresentado. As razões são
apropriadamente explicadas mais tarde com recurso a um bonito flashback de Paris quando Rick,
navegando nas memórias do seu romance com Isla, é avassalado por uma imensidão
de sentimentos que tão bem tinha antes acorrentado. Rick tem a hipótese de
retomar o seu romance com Isla; contudo, compreendendo a história de Isla com
Laszlo, e o papel deste na guerra, Rick toma a difícil e acertada decisão de
fazer o mais digno. Isla parte com Laszlo e Rick, sacrificando a sua paixão,
age em concordância com o seu patriotismo, revelando-se o tal benfeitor resignado.
Simultaneamente, Rick estabelece uma forte amizade com o Capitão Louis, outro
benfeitor que, não sendo resignado como ele, mas mostrando-se analogamente
neutro e astuto, age igualmente pela sombra no interesse da integridade,
sacrificando o seu interesse pessoal. Louis oferece muito do humor de Casablanca, mas é, discutivelmente, a
personagem mais inteligente; Claude Rains estabelece perfeitamente as duas
camadas da sua personagem, tornando um provável mau da fita numa personagem que
interessa e merece afeição.
Casablanca é tanto sobre sacrifício
pessoal como sobre a necessidade humana de relacionamento, manifestadas de modo
preludiar na composição lírica As Time
Goes By, um aviso melódico para os protagonistas e para o espectador. Ambos
carregam-se de argumentos até ao desfecho catártico de Casablanca e no fim, sem vencedor nem vencido, subjaz a noção de
que o que é passageiro pode durar para sempre; Paris ficará para sempre. Casablanca também ficará para sempre. O
drama, retocado com romance e humor, enche de esperança. Tal como o Rick’s é um subterfúgio para aqueles
refugiados de guerra, Casablanca é um
subterfúgio para refugiados das problemáticas diárias, uma porta dourada para o
romantismo intemporal, uma acção de purificação que nunca se esgota.
Casablanca é, indubitavelmente, uma das
melhores obras a consagrar o grande ecrã. Considere-se a época de ambiguidade
em que tal proeza foi construída, o mérito de Casablanca resulta acrescido. De considerar ainda que, a par do
alinhamento narrativo, o aspecto técnico é de muita qualidade e de uma beleza
cinematográfica perfeita. O mise-en-scène
é elegante e acrescenta outra camada dramática à narrativa; é exemplo a cena em
que Rick lamenta a vinda de Ilsa e se recorda do seu passado: aqui, a
encenação, com o seu jogo de câmaras, luz (reproduzindo um farol distante) e
sombra, fomenta o estado taciturno e desesperançado de Rick. As justaposições
entre cenários reais e projecções, para a grau de tecnologia da época, são
fantásticas. Como uma cereja no topo do bolo, a banda sonora de Max Steiner, no
seu teor épico e romântico, presenteia o toque de classe final.
Casablanca é de visualização necessária;
se não pelo seu valor técnico, pelo seu valor pedagógico. Muito se tem tentado
reproduzir a fórmula de Casablanca ao
longo dos anos; mas esta, tal como receitas secretas, artes esquecidas e
engenhos perdidos, é praticamente inimitável. É única. É perfeita.
CLASSIFICAÇÃO: Obra-prima
Trailer:
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