quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Filme: 2001: Odisseia no Espaço (1968)

2001: Odisseia no Espaço, a discutível obra de referência de Stanley Kubrick, é um marco da ficção científica e uma absoluta expressão do valor de fundamentais temáticas no grande ecrã. Uma obra-prima para todos os tempos.

Nos princípios da civilização humana, um estranho monólito entra em contacto com o primata, impulsionando a evolução humana. No seu auge e no da exploração espacial, o Homem, na pele de David Bowman (Keir Dullea), volta a reencontrar-se com este misterioso objecto, com resultados imprevisíveis. 

Adaptado e realizado por Stanley Kubrick do clássico homónimo de Arthur C. Clarke, 2001: Odisseia no Espaço marca um ponto de viragem na sétima arte: o nascimento da ficção científica como uma força a ter em conta no cinema. Desde o seu lançamento, 2001: Odisseia no Espaço tem inspirado de forma incontestável todo o longo caminho percorrido no género cinematográfico, de Guerra das Estrelas a Gravidade. Enquanto impulsionador da ficção científica no grande ecrã, 2001: Odisseia no Espaço agrega temáticas incontornáveis que ainda hoje não encontram paralelo, questões da maior pertinência que obrigam a uma reflexão profunda e preocupada sobre a própria existência humana.

Dividida em quatro partes, a narrativa proposta por Arthur C. Clarke, com as devidas transformações de Stanley Kubrick, viaja dos primórdios ao auge da existência da Humanidade. A famosa transição de um osso lançado por um primata – compreendendo por fim o seu lugar privilegiado na Natureza - para um vaivém na órbita da Terra constitui a grande manifestação desta viagem, um momento visualmente fugaz que incorpora todo o caminho evolutivo realizado pelo Homem. Mas 2001: Odisseia no Espaço não se reduz a apresentar este caminho; em vez disso, introduz um conceito sugestivamente polémico que propõe um gatilho extraterrestre para toda a evolução que a instantânea transição de o osso para o vaivém traduz. Esta proposta alienígena, na qual o misterioso monólito constitui o missing link para o primeiro salto evolutivo do Homem, é, no mínimo, desconcertante; a forma artística e enigmática como é introduzida por Stanley Kubrick, sob a icónica e épica música e o setting inquietante, não defrauda.

O segundo contacto com o misterioso monólito ocorre na Lua, na segunda parte da narrativa, ocorrendo no mesmo desconcertante feitio. Deste re-contacto sobrevém uma missão a Júpiter no intuito de determinar a origem da forma extraterrestre. Aqui, é introduzido ao espectador HAL 9000, um supercomputador pautado por inteligência artificial que é responsável por toda a gestão da nave espacial. HAL, um reduzido ponto vermelho personalizado, omnipresente e omnisciente, representa o desígnio da evolução humana, o auge da evolução tecnológica que se sucede à evolução biológica. Para todos os efeitos, HAL é produto final da evolução inicialmente propagada pelo monólito. Todavia, HAL, que se considera infalível e incapaz de errar, não é perfeito nem dissociável da sua própria vontade; a sua capacidade de mímica leva-o a incorporar defeitos humanos e, no turbilhão de sentimentos, a tornar-se vingativo e calculista. HAL incorpora, quiçá, o melhor e pior da Humanidade e, da mesma maneira, o seu igual natural destino.

HAL coloca em risco a missão a Júpiter. A força maior da Humanidade, no contacto com a sua energia primordial, transforma-se na sua pior fraqueza. Não admira pois que quando David, o único sobrevivente, estabelece o terceiro contacto com o monólito ocorra o derradeiro efeito desta misteriosa entidade sobre a Humanidade, aparentemente provocando um renascimento que corrige os erros acumulados. David experiencia uma jornada sensorial renovadora e desta resulta o Star-Child, a salvação e a nova oportunidade da Humanidade para se transcender. 

Stanley Kubrick filma 2001: Odisseia no Espaço de modo incrível e brilhante, com ângulos e planos louvavelmente alcançados, respeitando a ciência envolvida até ao mais ínfimo detalhe. Sem nunca perder noção da experiência cinematográfica, a sua realização é segura e ciente da panóplia de temáticas envolvidas; mesmo que pareça perder-se em contemplações, Stanley Kubrick mostra perfeita noção da percepção visual e sensorial que pretende transmitir. Tal como numa odisseia, leva o tempo necessário para chegar aonde pretende chegar, mesmo que isso implique abdicar por longos minutos de qualquer diálogo ou escusar-se a partilhar algo mais do que a sensação psicadélica e desconfortável da transformação de David. O trabalho inovador de Stanley Kubrick constitui uma escola para eras futuras.


2001: Odisseia no Espaço é uma obra de referência na sétima arte, de visualização compulsiva, cujas temáticas nunca se esgotam, susceptíveis de originar diferentes interpretações a cada nova visualização. 2001: Odisseia no Espaço apresenta um carácter visionário incontornável. Muita da tecnologia proposta, à altura num estilo utópico, é hoje realidade. O tempo dirá sobre a total capacidade de presságio de 2001: Odisseia no Espaço. Certo mesmo é que esta obra nunca perderá o seu encanto e a sua relevância no meio que ela mesma impulsionou.   


CLASSIFICAÇÃO: Obra-prima


IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0062622/
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domingo, 22 de setembro de 2013

Filme: Casablanca (1942)

Casablanca é um clássico extraordinário que se prova notavelmente equilibrado em todas as suas características. É uma história magnífica de paixões e perseveranças e de personagens intemporais que, com todas as palavras icónicas e com a amplitude de falhas e virtudes, tocam profundamente.  

Na 2ª Guerra Mundial, no auge do domínio germânico, Casablanca, em Marrocos, é um ponto de passagem obrigatória para os refugiados que pretendem alcançar as margens americanas através das ligações com Lisboa. Ali, Rick Blaine (Humphrey Bogart), um americano, possui um estabelecimento por onde todos passam. Um dia, Victor Laszlo (Paul Henreid), um revolucionário checo que se opõe ao regime nazi, chega a Casablanca com a sua mulher Ilsa Lund (Ingrid Bergman) à procura da rota para a América. Desconhecido de Laszlo, Ilsa e Rick partilham uma história passada que pode afectar as suas pretensões.

Provavelmente não existe nenhuma fórmula balanceada no cinema; não existe nenhuma concentração ideal de romance, drama e humor. Mas, a existir, Casablanca é a grande e mais perfeita expressão desta soberba e sublime combinação. Casablanca faz apaixonar, faz sentir e faz sorrir; um verdadeiro triunfo e um maravilhoso subterfúgio consumado numa época cinzenta e funesta. Casablanca, que parece tematicamente imparcial à superfície, é uma obra intrinsecamente patriótica, patriótica pelo mundo, pelos valores da igualdade, da liberdade e da fraternidade. Adequadamente, Rick, o protagonista desta intemporal narrativa, interpretado com classe por Humphrey Bogart, é alguém aparentemente neutro, desinteressado e emocionalmente vazio; todavia, alguém que, debaixo desta máscara de salvadoras falsidades, resguarda uma moral imensa e comprometida na integridade. Rick é o verdadeiro benfeitor resignado, alguém que julga agir pela circunstância, negando e jamais atribuindo mérito ao seu natural decoro. Humphrey Bogart dá uma lição de representação e cria um Rick para todos os tempos. 

O primeiro acto de bondade de Rick acontece quando Casablanca nos introduz o Rick's Café Américain, um estabelecimento de folia e de jogos de sorte e azar que sobrevive graças à capacidade de Rick para subverter a autoridade local e manter a neutralidade. No clima de incerteza, o Rick’s é um refúgio cultural e social para acomodados e refugiados, uma porta de acesso à época pré-guerra. Quando Laszlo e Isla entram pelo Rick’s adentro, a sensação de imersão temporal atinge o seu auge. Isla sente-se inundada por uma tranquilidade inesperada, por um estado de espírito que não sentia desde que a guerra a tinha alcançado. O realizador Michael Curtiz captura este momento com admiração, focando a sua câmara no olhar surpreendido da bela Isla, cuja, sem imediatamente se aperceber, reconhece logo a distintiva de Rick, a sua paixão dos tempos de Paris. Ingrid Bergman é aqui, e por aqui adiante, deslumbrante e vibrante.

O primeiro contacto de Rick com Isla, ao som de As Time Goes By, deixa uma primeira explicação para o rancor e para a indisposição que Rick ostenta desde que nos é apresentado. As razões são apropriadamente explicadas mais tarde com recurso a um bonito flashback de Paris quando Rick, navegando nas memórias do seu romance com Isla, é avassalado por uma imensidão de sentimentos que tão bem tinha antes acorrentado. Rick tem a hipótese de retomar o seu romance com Isla; contudo, compreendendo a história de Isla com Laszlo, e o papel deste na guerra, Rick toma a difícil e acertada decisão de fazer o mais digno. Isla parte com Laszlo e Rick, sacrificando a sua paixão, age em concordância com o seu patriotismo, revelando-se o tal benfeitor resignado. Simultaneamente, Rick estabelece uma forte amizade com o Capitão Louis, outro benfeitor que, não sendo resignado como ele, mas mostrando-se analogamente neutro e astuto, age igualmente pela sombra no interesse da integridade, sacrificando o seu interesse pessoal. Louis oferece muito do humor de Casablanca, mas é, discutivelmente, a personagem mais inteligente; Claude Rains estabelece perfeitamente as duas camadas da sua personagem, tornando um provável mau da fita numa personagem que interessa e merece afeição. 

Casablanca é tanto sobre sacrifício pessoal como sobre a necessidade humana de relacionamento, manifestadas de modo preludiar na composição lírica As Time Goes By, um aviso melódico para os protagonistas e para o espectador. Ambos carregam-se de argumentos até ao desfecho catártico de Casablanca e no fim, sem vencedor nem vencido, subjaz a noção de que o que é passageiro pode durar para sempre; Paris ficará para sempre. Casablanca também ficará para sempre. O drama, retocado com romance e humor, enche de esperança. Tal como o Rick’s é um subterfúgio para aqueles refugiados de guerra, Casablanca é um subterfúgio para refugiados das problemáticas diárias, uma porta dourada para o romantismo intemporal, uma acção de purificação que nunca se esgota.

Casablanca é, indubitavelmente, uma das melhores obras a consagrar o grande ecrã. Considere-se a época de ambiguidade em que tal proeza foi construída, o mérito de Casablanca resulta acrescido. De considerar ainda que, a par do alinhamento narrativo, o aspecto técnico é de muita qualidade e de uma beleza cinematográfica perfeita. O mise-en-scène é elegante e acrescenta outra camada dramática à narrativa; é exemplo a cena em que Rick lamenta a vinda de Ilsa e se recorda do seu passado: aqui, a encenação, com o seu jogo de câmaras, luz (reproduzindo um farol distante) e sombra, fomenta o estado taciturno e desesperançado de Rick. As justaposições entre cenários reais e projecções, para a grau de tecnologia da época, são fantásticas. Como uma cereja no topo do bolo, a banda sonora de Max Steiner, no seu teor épico e romântico, presenteia o toque de classe final.


Casablanca é de visualização necessária; se não pelo seu valor técnico, pelo seu valor pedagógico. Muito se tem tentado reproduzir a fórmula de Casablanca ao longo dos anos; mas esta, tal como receitas secretas, artes esquecidas e engenhos perdidos, é praticamente inimitável. É única. É perfeita.  


CLASSIFICAÇÃO: Obra-prima


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